sexta-feira, 8 de julho de 2011

Situação do homem frente ao problema "Deus"

Quem tentar falar hoje sobre o problema da fé cristã diante de homens não familiarizados com a linguagem eclesiástica por vocação ou convenção, depressa sentirá o estranho e surpreendente de semelhante iniciativa. Provavelmente depressa descobrirá que a sua situação encontra uma descrição exata no conhecido conto de Kierkegaard sobre o palhaço e a aldeia em chamas, conto que Harvey Cox retomou há pouco em seu livro A Cidade do Homem. A estória conta como um circo ambulante na Dinamarca pegou fogo. O diretor manda à aldeia vizinha o palhaço, já caracterizado para a representação, em busca de auxílio, tanto mais que havia perigo de alastrarem-se as chamas através dos campos secos, alcançando a própria aldeia. O palhaço corre à aldeia e suplica aos moradores que venham com urgência ajudar a apagar as chamas do circo incendiado. Mas os habitantes tomam os gritos do palhaço por um formidável truque de publicidade para aliciá-los ao espetáculo; aplaudem-no e riem a bandeiras despregadas. O palhaço sente mais vontade de chorar do que de rir.

Debalde tenta conjurar os homem e esclarecer-lhes de que não se trata de propaganda alguma, nem de fingimento ou truque, mas de coisa muito séria, porquanto o circo realmente está a arder. Seu esforço apenas aumenta a hilaridade até que, por fim, o fogo alcança a aldeia, tornando excessivamente tardia qualquer tentativa de auxílio; circo e aldeia tornam-se presa das chamas.

Cox conta esta estória como símile da situação do teólogo hodierno e vê a figura do teólogo no clown incapaz de transmitir aos homens a sua mensagem. Em sua roupagem de palhaço medieval ou de outro remoto passado qualquer, o teólogo não é tomado a sério. Pode dizer o que quiser, continua como que etiquetado e fichado pelo papel que representa. Qualquer que seja o seu comportamento e seu esforço de falar seriamente, sempre se sabe de antemão que ele é um clown. Já se adivinha qual o assunto de sua mensagem e se sabe que apenas está dando uma representação com pouco ou nenhum nexo com a realidade. Por isso pode ser ouvido sossegadamente, sem inquietar a ninguém com as coisas que afirma. Sem dúvida existe algo de angustiante neste quadro, algo da angustiada realidade em que a teologia e formulação teológica de hoje se encontram; algo da pesada impossibilidade de quebrar chavões do pensamento e da expressão rotineiros e de tornar reconhecível o problema da teologia como  assunto sério da vida humana.
Contudo, talvez o nosso exame de consciência deva mesmo ser mais radical. Talvez tenhamos de reconhecer que esse quadro excitante – por muito verdadeiro e digno de consideração que seja – ainda simplifica em excesso as coisas. Pois, dentro dele, tem-se a impressão de que o palhaço, ou seja o teólogo, é quem sabe perfeitamente que traz uma mensagem muito clara. Os aldeões, aos quais acorre, isto é, os homens sem fé, seriam, pelo contrário, completamente ignorantes, os que devem ser instruídos sobre o que lhes é desconhecido. E ao palhaço, em si, bastar-lhe-ia mudar de roupagem, retirar a maquilagem – e tudo estaria em ordem. Mas, por acaso a questão é tão simples assim? Bastar-nos-ia um simples apelo ao aggiornamento, uma mera retirada da maquilagem e uma reformulação em termos de linguagem do mundo ou de um cristianismo arreligioso para recolocar tudo nos eixos? Bastará uma mudança espiritual ou metafórica de vestes para que os homens acorram animados e ajudem a apagar o incêndio que o teólogo afirma estar lavrando com sério perigo para todos? Vejo-me compelido a afirmar que a teologia de fato desmaquilada e revestida de moderna embalagem profana, tal como hoje surge em muitos lugares, torna muito simplória essa esperança. Sem dúvida cumpre reconhecer: quem tenta explicar a fé no meio de homens mergulhados na vida moderna e imbuídos da moderna mentalidade, de fato pode ter a impressão de ser um palhaço ou alguém surgido de um antigo sarcófago, que penetrou no mundo hodierno, revestido de trajes e pensamentos da antiguidade, incapaz de compreender este mundo e de ser por ele compreendido. Todavia, se quem tentar anunciar a fé exercer bastante autocrítica, em breve notará não se tratar apenas de uma forma, de uma crise do revestimento em que a teologia se apresenta. Na estranha aventura teológica frente aos homens de hoje, quem tomar a sério a sua tarefa há de reconhecer e experimentar não só a dificuldade da interpretação, mas também a insegurança da própria fé, o poder arrasador da descrença dentro de sua própria vontade de crer. Por isso quem tentar honestamente prestar contas da fé cristã a si e a outros, aprenderá, a duras penas, não ser ele em absoluto o mascarado ao qual bastaria depor o disfarce para poder ensinar eficazmente aos outros. Compreenderá que a sua situação não se diversifica muito da situação dos outros, como talvez inicialmente tivesse pensado. Terá consciência de que de ambos os lados estão presentes as mesmas forças, muito embora de maneiras diversas.

(...)

Paulo Claudel evoca em um quadro grandioso e convincente essa situação do crente, na abertura do seu "Soulier de Satin". Um missionário jesuíta, irmão do herói Rodrigo, o homem mundano, aventureiro errante e incerto entre Deus e o mundo, é representado como náufrago. Sua nau foi afundada por piratas. Ele mesmo, amarrado a uma trave do barco afundado, vaga nesse pedaço de madeira, pelas águas tormentosas do oceano. O drama principia com o seu derradeiro monólogo: "Senhor, agradeço-te por me teres amarrado assim. Por vezes sucedeu-me achar difíceis os teus mandamentos; senti desnorteada, fracassada a vontade diante dos teus mandamentos. Mas hoje não poderia estar mais fortemente atado a ti, do que o estou; e muito embora meus membros se movam um sobre o outro, nenhum deles é capaz de afastar-se um pouco de ti. E assim realmente estou preso à cruz; e a cruz, à qual me vejo atado, não está presa a nada mais. Ela voga pelo mar"

Atado à cruz – e a cruz ligada a nada, vogando sobre o abismo. Dificilmente se poderia descrever mais acurada e exatamente a situação do crente hodierno. Apenas um madeiro oscilante sobre o nada, um madeiro desatado parece sustê-lo e tem-se a impressão de ser possível adivinhar o instante em que tudo irá submergir. Um simples madeiro solitário liga-o a Deus; mas, sem dúvida, liga-o inevitavelmente e, no final de tudo, ele tem a certeza de que esse madeiro é mais forte do que o nada que fervilha debaixo dele, esse nada que, apesar dos pesares, continua sendo a força ameaçadora propriamente dita do seu presente.
O quadro apresenta, além disso, uma dimensão mais vasta que, aliás, me parece a mais importante. Pois esse náufrago jesuíta não está sozinho; nele se encontra como que evocada a sorte do seu irmão; nele está presente o destino do irmão, daquele irmão que se considera descrente, que deu as costas a Deus, por não considerar tarefa sua a espera, mas "a posse do atingível... como se este pudesse estar em parte outra
do que onde tu, ó Deus, estás".

Fonte: Introdução ao Cristianismo, Joseph Ratzinger. Herder, São Paulo, 1970.

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